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25 de maio de 2017

O CAMINHO EM RETIRADA DA LAGUNA - 12 - MARCHAS E COMBATES DIA 3 E 4 DE JUNHO 1867

CAPÍTULO XXI

AS FORÇAS EM OPERAÇÕES AO SUL DA PROVÍCIA DE MATO GROSSO
O retorno a Nioac dia 3 e 4 de junho 1867

Período de 24 de Janeiro a 4 de junho de 1867
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1- Marcha à Nioac

No dia seguinte, 3 de junho, percorremos rapidamente a distância até Nioac, observando com exatidão a ordem que havíamos adotado para atravessar a planície e o inimigo que seguia a nossa retaguarda, não se atreveu a tentar ataque algum; mostrou-se pelo contrário muito pronto em retirar-se sempre que lhe sucedia achar-se ao nosso alcance. 


Vista Panoramica da estrada antiga (1867) de acesso entre a Povoação de Nioac para as Colonias Militar dos Dourados, de Miranda, Fazenda Jardim, Forte de Bella Vista Paraguai. (à direita). No lado esquerdo, verifica-se as rodovias de acesso nos dias atuais (2017). Imagem adaptada do Google Earth Pro, 2016. José Vicente Dalmolin.


Costeávamos a margem esquerda do rio Nioac e como alguns bois de carro, que os condutores do comboio mercante tinham abandonado ao fugirem e que pastavam quando os vimos, se tornassem alvo da perseguição de alguns cavaleiros paraguaios, uma companhia do nosso Batalhão Nº. 21º foi mandada contra estas com uma peça de artilharia. Voltaram rédeas imediatamente com movimento tão precipitado que despertaram riso geral, assim como vaias da nossa gente.

O vau do rio Nioac era bom e passamo-lo sem demora. Achamos na margem direita vestígios ainda recentes da passagem de um corpo numeroso de cavalaria e grande quantidade de papéis rotos, de livros, de registros de administração, sujos e dilacerados, que provinham evidentemente do saque de alguma carreta brasileira, tomada nesse lugar pelos inimigos e destruída ou levada por eles.
Panorama atual por onde passaram as Forças em Operações ao Sul da Província de Mato Grosso em 1867 ida e volta a Invernada da Laguna no Paraguai, sobre o Rio Nioaque. Imagem adaptada por José Vicente Dalmolin, capturada do Google Earth Pro 2017.

2- A povoação e Acampamento de Nioac, pela segunda vez em chamas

As Forças Expedicionárias retornam a Nioac, após aproximadamente 98 dias

A sua presença era-nos também revelada por tênues fumaças no horizonte. Era o acampamento construído na povoação de Nioac, supusemos que os paraguaios haviam incendiada. 

Com a demora que ali tivéramos anteriormente[1], tendo chegado a formar-se ai uma como aldeia com tetos de palha, palhoças, não nos ficou dúvida de que eram as nossas cabanas que ardiam. Semelhante espetáculo fez-nos acelerar o passo, e reconhecemos para logo que não nos havíamos enganado. 

Às três horas da tarde[2] do dia 3 de junho de 1867 estávamos no meio dessas ruínas em chamas que foram as habitações nossas e deitamos lhes derradeiro olhar, não sem tristeza; o soldado e o viajante tomam sempre interesse pelos sítios em que repousaram a cabeça.
Encenação Teatro ao Ar Livre, em Nioaque, da chegada dos Retirantes da Laguna, sobreviventes, a povoação de Nioac, no dia 3 de junho de 1867, após ter sido ateada fogo pela Cavalaria paraguaia. Imagem José Vicente Dalmolin, 2011. 3º Encontro Internacional de História Militar.
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Notas de Referências:
[1] NE – O tempo aproximado em que as Forças Expedicionárias permaneceram no local que estava instalada a povoação de Nioac foi de meados de 24 de janeiro a 4 de junho de 1867. Neste período, parte das Forças marcharam até Laguna e outro parte menor permaneceu no acampamento, povoação de Nioac. Abandonando-a com a aproximação de um pequeno grupo de Cavalaria paraguaia.
[2] NE – Estas Forças Expedicionárias saíram de Nioac no dia 25 de fevereiro rumo à fronteira e retornam só em 3 de junho de 1867. Esta marcha durou aproximadamente noventa e oito dias. (fev=3, mar=31, abr=30, maio=31, jun=3)
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3- Reaparecimento do mercador italiano Saraco

Um incidente de ópera-bufa[3] veio a ponto distrair-nos dessa impressão melancólica, foi o reaparecimento do italiano que já tanto nos divertira no acampamento da Laguna.

Corria, mas sem fundamento, que havia sido assassinado com outros mercadores que, por assim dizer, haviam desertado dentre nós, apenas passaram o rio Miranda.

O italiano separara-se avisadamente deles, os paraguaios. Vagara do Canindé à Nioac, sem ideia do lugar para onde devia dirigir-se, andando de moita em moita, sempre a tremer de medo, não encontrando uma só que lhe inspirasse confiança.

Acabou todavia por escolher um, e com tanta felicidade que nesse mesmo dia pode lá de seu refúgio ver adiantar-se a nossa coluna. O júbilo que sentiu, deu-lhe demasiada pressa em mostrar-se. O seu estranho vestuário e a precipitação dos seus movimentos fizeram-no tomar por paraguaio. A nossa gente da vanguarda fez fogo nele. Deixou-se cair como morto dentro da moita. Depois de algum tempo de prudente imobilidade, começou a erguer pouco a pouco para o ar, a manta de pescoço na ponta de uma varinha, depois, vendo que ela não atraia balas, um braço primeiro, depois a cabeça, e afinal toda a sua pessoa, que era nem mais nem menos a do nosso amigo e conhecido Saraco.
Encenação Teatro ao Ar Livre, em Nioaque, da chegada dos Retirantes da Laguna, sobreviventes, a povoação de Nioac, no dia 3 de junho de 1867, após ter sido ateada fogo pela Cavalaria paraguaia. Imagem José Vicente Dalmolin, 2011. 3º Encontro Internacional de História Militar.

Os soldados, reconhecendo-o imediatamente, acolheram-no com mil abraços, felicitações e perguntas. Estava em inexprimível ebriedade por ver-se livre dos perigos em que supusera perder a vida, e de que se via resgatado ainda barato, à custa das suas fazendas e de tantos momentos de pânico.

Quanto ao inimigo, não devíamos tornar a vê-lo senão uma vez, mas tínhamos ainda de suportar-lhe o efeito da perfídia e cruel animosidade.
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Notas de Referências:
[3] NE - Espécie de ópera-cômica, da qual se distingue pela presença de personagens burlescas e por uma música mais ligeira. Ópera de assunto faceto em que o diálogo alterna geralmente com o canto. "ópera bufa", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. http://www.priberam.pt. [consultado em 04-11-2016].
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4- A decepção com a atitude do oficial responsável pela guarnição de Nioac em tê-la abandonada à Cavalaria paraguaia, Capitão Martinho José Ribeiro

O oficial encarregado da defesa de Nioac, enquanto durasse a nossa incursão no território paraguaio, ausentara-se desta povoação no dia 1° de junho, sem que ali se soubesse da aproximação do inimigo, procedendo assim contra a ordem formal do dia 22 de maio acima mencionada, que lhe determinava defendesse a todo custo um ponto que era a nossa base de operações.

Não tinha falta de víveres! O chefe do depósito[4] deixara-lhes em abundância. É crível[5] que a sua gente, seduzida pela vizinhança dos rios Nioac, Urumbeva[6] e dos bosques, se tivesse retirado para o córrego Formiga, até faltar-lhe completamente? 
Panorâmica geográfica de Nioaque atual, transportada para o contexto de 1867. Podendo contextualizar-se o local onde havia os quarteis e o acampamento das Forças, o encontro entre os rios Urumbeva e Nioaque, cujas margem abundavam matas e o passo primitivo por meio do qual dava-se acesso à Vila de Miranda e a Porto Canuto, onde foi o final da retirada.

Todos os oficiais do nosso corpo de exército darão testemunho do espírito de disciplina, de submissão, de dedicação enfim dos nossos soldados para com os seus chefes. E, ainda no caso de geral debandada, não deveria conservar-se de observação nas cercanias, onde tantas quebradas de terreno coberto de matas podiam abrigá-lo, e esperar por ali a nossa chegada? 

Houvera assim afastado de si a responsabilidade não só de enorme perda de material, mas de novo sacrifício de vítimas humanas que veio a custar-nos tão funesto abandono. Faltou-lhe resolução! Desapareceu, deixando ligada à sua memória a de uma deserção diante do inimigo.

Semelhante infidelidade tornou-se tanto mais sensível e tanto mais notada quanto as outras disposições do coronel Camisão no mesmo ofício foram observadas com mor exatidão.

As provisões de guerra e de boca, os arquivos, o dinheiro da caixa militar, esperavam-nos nos Morros, para onde o coronel Lima e Silva os mandara transportar.
Morro, no prolongamento da Serra de Maracaju, Rodovia Anástacio-Campo Grande BR 262, não muito longe da margem do rio Aquidauana, onde localizava-se Porto Canuto. Imagem José Vicente Dalmolin, 2011

Enquanto ele, Lima e Silva, tendo parado, conforme o espírito das suas instruções, a meio caminho, nas margens do Aquidauana e tratando de mandar sair de antemão tudo quanto nos podia preceder, doentes, mulheres, crianças, camaradas, soldados isolados ou inválidos. 

Ordenara também aos condutores das carretas que serviam nesses diferentes transportes, que voltassem sem demora apenas estivessem desimpedidos, ao mesmo tempo que retinha consigo a mor parte dos carros carregados de víveres e deles fazia um depósito móvel em vista da nossa próxima chegada.
Panorama da atual praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

Nioac, assim abandonada, caíra em poder dos paraguaios. 

Tudo saquearam! 

Tudo queimaram, com exceção da igreja[7], que pouparam, não por sentimento religioso, mas pelo contrário para empregá-la em uma cilada infernal que contra nós aparelharam, como se vai ver. 
Panorama da atual da Igreja de Santa Rita. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Antes da Explosão. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

A sua Infantaria, ao aproximarmo-nos, retirara-se a princípio e entrincheirara-se no cemitério. Passara depois pelo bosque em um vau do Urumbeva que fora reconhecido pela sua cavalaria.

Panorama ilustrativo, entre o ponto onde havia os quartéis, o acampamento dos Retirantes da Laguna e o Cemitério, onde o Corpo de Cavalaria do Paraguai que precedeu o acompanhamento da Força Brasileira, ficaram entrincheirado, aguardando o movimento do Exército Imperial. Imagem adaptada, José Vicente Dalmolin.

Sem preocupações quanto ao inimigo, fomos à pressa a ver se podíamos ainda salvar alguma cousa.
Panorama atual da presença da Cavalaria Paraguaia. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Antes da chegada dos Retirantes da Laguna. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.
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Notas de Referências:
[4] NE – O chefe da Intendência. 
[5] NE - Que se pode crer, passível de se crer; acreditável.
[6] NE – Na primeira tradução, 1874, foi grafada “Orumbeva”. Na versão francesa foi grafada “Oroumbeva”. Ainda pode ser encontrada a grafia Urumbeba e Orumbeba. As escritas modernas adotam a grafia “Urumbeva”, conforme registrou Joaquim Francisco Lopes em 8 de abril de 1849. Na Enciclopédia das Aguas de Mato Grosso do Sul, registra “Urumbeba” IHGMS 2014.
[7] NE – Sobre a situação da pequena igreja, localização e outros informações serão colocados em um tópico especial.
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5- Descrição de como se encontrava o acampamento, povoação de Nioac

A linda povoação, abandonada, tomada e devastada pela segunda[8] vez durante a guerra, era apenas um montão de destroços fumegantes. 

O vasto rancho, que anteriormente nos servira de armazém de víveres e que ainda achámos de pé sobre os seus esteios inflamados, mostrava pilhas de sacos que os nossos certamente não tinham tido tempo de carregar e que já eram presa do incêndio, vendo-se o arroz e a farinha carbonizados por fora, o sal, matéria tão rara e tão preciosa no sertão, enegrecia e derretia-se à nossa vista. 
Panorama atual a presença de suprimentos. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

Os nossos soldados se esforçaram em preservar o que puderam.

Aqui e ali estavam cadáveres por terra, todos de brasileiros e chegou-se a verificar que vários dentre eles tinham servido nas nossas fileiras. Tendo desertado durante o nosso maior infortúnio e morrendo de fome pelas matas, deram-se pressa, ainda com risco de serem reconhecidos, em compartir do saque. Um deles, de pés e mãos atados, fora sangrado, como se sangram os porcos. Outro jazia crivado de ferimentos e uma velha, atirada junto deles, degolada e com ambos os seios cortados, nadava no próprio sangue.
Panorama atual a presença de brasileiros mortos, os que permaneceram em Nioac com o retorno da cavalaria paraguaia. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

Quase toda a coluna foi acampar, para passar a noite, por traz da igreja na vasta esplanada que já descrevemos, onde, escalonados com os nossos canhões nos ângulos por maior segurança contra o inimigo, nos apoiávamos na mata do rio. Ali gozamos afinal de algum repouso. Repartiu-se ração dupla e tríplice, por permitirem-no as circunstâncias e o comandante comprazia-se principalmente em contentar o soldado tanto quanto podia. Era evidentemente a primeira vez que podíamos contar com o dia seguinte. 
Panorama atual a parte dos Retirantes pousando nas proximidades da Igreja.. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

Não nos faltava mais, para pormo-nos a coberto de qualquer eventualidade, do que fazer quinze léguas, por excelente estrada, de Nioac ao Aquidauana[9] onde éramos esperados. Tínhamos superabundância de víveres para o resto da marcha.

A noite foi calma, como tudo anunciava que devia sê-lo. 
Panorama atual posicionamento das peças de canhões da Artilharia para eventualidade de um ataque paraguaio. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.

Apenas amanheceu, 4 de junho, fizeram os nossos soldados derradeira visita às ruínas da povoação e carregaram tudo quanto escapara aos paraguaios. Nessa sucessão de rapinas, umas sobre outras, desapareceu em breves meses dessas regiões novas o pouco que o comércio nascente ali pudera introduzir em artigos de máquinas e ferramentas e, que o trabalho conseguira amontoar em produtos e economias.
Panorama atual. A vida na povoação de Nioac, comércio, máquinas, ferramentas, trabalho, produtos, economia. Praça dos Heróis, em Nioaque, onde realiza-se o Teatro ao Ar Livre, encenação do Episódio ocorrido em 1867. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016.
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Notas de Referências:
[8] NE – A primeira ocupação de Nioaque pelas tropas do Paraguai ocorreu no dia 2 de janeiro de 1865. A Segunda Ocupação ocorreu no dia 3 de junho de 1867.
[9] NE – O autor refere-se ao Rio Aquidauna, margem esquerda, nos tempos modernos, Município de Anastácio-MS. Nesta época era destaque o “Porto Canuto”, local que conserva um Monumento.
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6- A Igreja, o incêndio provocado explosão de pólvora. O último ataque astuto dos Paraguaios, dia 4 de junho 1867

Tínhamos, quando estivemos a última vez[10] em Nioac, depositado na igreja muitos objetos de todo o gênero, instrumentos das nossas bandas de música e munições de guerra. 
Encenação Teatro ao Ar Livre, em Nioaque, panorama da Igreja de Santa Rita, antes da explosão em 4 de junho de 1867. Imagem José Vicente Dalmolin, 2011. 3º Encontro Internacional de História Militar.

Parece que os paraguaios encontraram ainda resto considerável desse armazenamento, por não ter havido tempo bastante para removê-lo. Havia grandes montes de cartuchos e foi isso talvez que lhes despertou a primeira ideia da horrível maquinação em que lhes folgou o ânimo malvado. Depois de tirarem o que mais lhes covinha, deixaram o resto para atrair-nos e demorar-nos o maior espaço de tempo que fosse possível ao redor de um montão de objetos, sob o qual colocaram um barril de pólvora com os seus rastilhos.
Simulação da Cavalaria Paraguaia, preparando a armadilha dentro da igreja, antes de retirarem para o entrincheiramento na região do Cemitério. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016. Nioaque, Praça dos Heróis.

Não podíamos sequer suspeitar essa cilada! Mas por termos de transportar cartuchames, tomávamos as precauções do costume contra a possibilidade de alguma explosão.

Enquanto a nossa gente trabalhava dentro da igreja, sentinelas vigiavam para que nenhum fogo se acendesse nos arredores. Sucedeu que um desgraçado soldado encontrasse um isqueiro no chão dentro do edifício e tivesse a inconcebível fantasia de servir-se dele ali mesmo, caiu uma faísca sobre alguns grãos de pólvora que estava espalhada nos pavimentos[11] da nave.

Teria havido conflagração instantânea a não ser a umidade do subsolo, então muito grande, ou a serem os rastilhos contínuos, mas não o eram. Para melhor enganar-nos, os paraguaios só tinham rastreado a pólvora sóbria e desigualmente, com o cuidado minucioso, e o cálculo hábil do selvagem aparelhando as suas cruezas.
Os soldados vigiam em torno da igreja, enquanto outro grupo inspecionava dentro da nave da igreja tudo o quanto havia de objetos e explosivos. Imagem José Vicente Dalmolin. 12ª Jornada Cultural da Retirada da Laguna, 2016. Nioaque, Praça dos Heróis.

A princípio viram-se brilhar pequenas chamas, aqui e acolá erguerem-se sucessivamente leves espirais de fumaça. Todavia alguns soldados correram a deter o fogo no momento em que ele se propagava. Mas os oficiais presentes, avaliando melhor o perigo, mandaram imediatamente evacuar a igreja. 

A esta ordem, correram de tropel[12] para as portas! 

E como a própria acumulação embargasse a saída, deu-se a explosão antes de acharem-se todos da parte de fora. 

Por pouco não voou pelos ares todo o edifício! 

As paredes ficaram abaladas! 

O conjunto todavia resistiu! A não ser isso, todos quantos ali se achavam teriam morrido infalivelmente, esmagados debaixo das ruínas.

Simulação da primeira explosão da Igreja de Santa Rita, apresentado aos participantes e público da 1ª Marcha percorrida dos tempos modernos, de Laguna até Nioaque, no ano de 1999. Imagens José Vicente Dalmolin

O fragor e o abalo foram terríveis até no sítio afastado em que estávamos com o comandante. Um grande grito acompanhou o estouro, seguiu-se silêncio. Depois clamores horríveis e novo silêncio. Soou o clarim! Pois julgou-se que era o inimigo e os corpos entraram em formatura.

Já havíamos corrido à igreja. 

Viam-se sair dela no meio de novelos de fumo[13], fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo, uns com as roupas chamejantes, outros completamente nus e com a pele caindo aos pedaços, soltando rugidos, alguns rodopiando sobre si mesmos como endemoninhados e contorcendo-se já nas angústias da agonia. Um soldado de cor preta perdera toda a epiderme do rosto, arrancada como uma máscara, o corpo era uma chaga viva. Um sargento, cujas carnes estavam igualmente descobertas, pedia que o acabassem com uma bala ou com um golpe de espada. Uns quinze desses infelizes morreram logo ali no local.
Simulação dos Soldados feridos saindo de dentro da igreja. Imagem José Vicente Dalmolin. Praça dos Heróis, Nioaque. 3º Encontro Internacional de História Militar, 2011.

Nota:
Quanto ao número dos que pereceram como consequência deste incêndio na igreja há outras informações, tais como: o Comandante Major  José Thomaz Gonçalves, no Relatório que fez ao Presidente da Província de Mato Grosso em 16 de junho de 1867, Dr. José Vieira Couto de Magalhães registra: “Apesar das mais enérgicas e reiteradas recomendações, a imprudência de um soldado provocou uma formidável explosão que queimou 13 praças, das quais 6 falecerão poucos dias depois, apesar dos cuidados que fiz observar na condução deles”. Na Praça de Nioaque e nos eventos  teatrais alusivos a este episódio registram os seguintes nomes:  Do Corpo Provisório de Artilharia
Sd Bernardo Rodrigues Cesar,
Sd João Pereira de Souza.

Do 1º Corpo de Caçadores a Cavalo
Sd Francisco Antonio das Chagas,

Do 17º Batalhão de Voluntário da Pátria, adido ao 1º corpo dos caçadores:
Anspeçada Bento de Arruda Botelho.

Do 21º Batalhão de Infantaria: 
1º Sgt Antonio Thimóteo Carneiro,
Anspeçada Manoel da Paixão,
Sd José Felix de Azevedo,
Sd Joaquim Sabino de Andrade

Sd Benedito José da Siqueira.


Monumento e placa na praça de Nioaque com os nomes grafados dos que pereceram nesta explosão. imagem José Vicente Dalmolin. Junho/2017

Todos àqueles em favor de quem a arte podia fazer alguma cousa, ou diminuindo-lhes as dores ou salvando-os, tornaram-se alvo dos cuidados dos nossos médicos e preocupação de todos nós, tanto mais quanto a compaixão para com eles trazia de envolta a indignação contra os autores da catástrofe. E não houve depois um só curativo entre as vítimas que foi possível arrancar à morte, que não fosse saudado por todos como uma ventura comum.

Tal foi o adeus dos paraguaios, o último efeito da sua sanha[14] contra nós. Sem que nos deixassem, tomaram a cautela de não se mostrarem senão fora de alcance.
O ato da explosão da Igreja ou incêndio ficou marcado como o último ato da astúcia da Cavalaria Paraguaia contra os Retirantes da Laguna. Praça dos Heróis, Nioaque. 2016. José Vicente Dalmolin.

No dia 5 de junho de 1867, antes que a noite[15] se houvesse completamente dissipada, partíamo-nos da mísera e formosa Nioac, aniquilada enfim com a sua igreja. Seguíamos a estrada do Aquidauana.
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Notas de Referências:
[10] NE – 24 de fevereiro 1867.
[11] NE – Espalhados pelo chão, piso.
[12] NE – Ajuntamento; aglomeração. 
[13] NE – O sentido da palavra fumo, é empregado como sinônimo de fumaça; névoa escura; labaredas ou chamas de fogo entre meio a nuvens de fumaça.
[14] NE – O mesmo que ira; fúria; ódio.
[15] NE - Ao amanhecer do dia.
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