CAPÍTULO XVII
AS FORÇAS EM OPERAÇÕES NO SUL DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
A Retirada chegando ao extremo: O abandono de enfermos com Cholera Morbus. A contaminação de Juvêncio, Camisão, Lopes. A morte Lopes e filho. Dias 25, 26, 27 de maio 1867
Praça General Tibúrcio - Monumento aos Heróis da Laguna e Dourados - O Transporte dos Coléricos – Rio de Janeiro 2007 - Livro Monumento Histórico do Cemitério dos Heróis da Retirada da Laguna - Edmilson Lima de Souza & José Vicente Dalmolin
Parte I
1- Chegada às divisas das terras do Guia Lopes, deixando o pouso no rio Verde
A picada que acabava de abrir o capitão Pisaflôres, dera já passagem ao nosso guia que, vendo-se afinal nas divisas das terras que pertenciam a sua propriedade, da estância[1] de que tanto gostava ele que falava tantas vezes, não pudera resistir ao desejo de entrar nela o mais depressa possível e para lá se dirigiu com o filho e os refugiados do Paraguai. A largura da picada era suficiente para passarem homens, não as nossas carretas e as nossas peças[2], e tinha-se ainda de melhorar as rampas enlameadas do rio, cousa que requeria tempo, no estado de fraqueza em que nos punham a moléstia e a fome.
Mapa ilustrativo da marcha das Forças entre o pouso na margem do Córrego Verde e o Cambaracê. Adaptado da Enciclopédia das Águas MS. IHGMS 2014.
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Notas de Referências:
[1] NE – De acordo com as pesquisas, do professor José Vicente Dalmolin, no Livro Guia Lopes da Laguna, Nossa Terra, Nossa Gente, Nossa História, volume 1, documentos o Inventario das Terras e Bens referentes a José Francisco Lopes, o Guia Lopes, iniciado em 1873, pelos herdeiros; documento Requerimento de Posse da Fazenda Jardim – 1894 e o Título definitivo de Posse expedido em 1902, conclui-se que as propriedades estendiam-se entre as margens esquerda e direita do Rio Miranda. A sede ficava na margem direita, atual município de Guia Lopes da Laguna. As terras da margem esquerda localizam-se atualmente no município de Jardim. Quando foi publicado o Título definitivo de posse todas as áreas pertenciam ao Município de Nioaque. A propriedade da margem direita denominava-se “Jardim” e a da esquerda “Prata”. A abrangência da área era de 46.552 hectares.
[2] NE – Nas traduções atuais, armões e bocas de fogo.
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2- Dificuldades no transporte dos enfermos com cholera morbus
Só às dez horas dá manhã do dia 25 começamos a nos mover para alcançarmos a margem direita do Verde[3] e tínhamos mandado ocupar ali uma eminência que domina todos os arredores. O transporte devia ser extremamente lento; como não ser assim?
O número de padiolas que era preciso fazer atravessar o ribeirão era de oitenta e seis[4], ocupando cada uma oito homens que se revezavam, todos além disso de má vontade e desanimados, mostrando os mais recalcitrantes[5] os pés estrepados e cobertos de sangue.
Os oficiais, com a espada em punho, exigiam o cumprimento, desse dever, tanto mais penoso quanto se não podia esperar dele o menor resultado benéfico, por isso que todos os doentes estavam como de antemão condenados, sacrificando-se assim por amor de moribundos quanto restava de saúde e futuro no corpo de exército.
Tínhamos perdido muito mais de cem homens desde a invasão da epidemia e acabavam ainda de ser enterrados uns vinte com o tenente Guerra no acampamento que deixávamos.
Transporte dos Coléricos
Pintura de Álvaro Marins. (Revista Trilha da Retirada da Laguna,2003)
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Notas de Referências:
[3] Ne nos Originais está o nome Prata, conforme expus no capítulo anterior.
[4] NE – Algumas edições modernas registram o número de 96 (noventa e seis) entretanto, a edição de em português de 1874 e a edição francesa de 1891, registram o número de 86 (oitenta e seis). “Le nombre des litières auxquelles il fallait faire passer l'eau était de quatre-vingt six, employant chacune huit hommes qui se relayaient”. Se fizermos uma matemática básica, 86 x 8 = 688, ou seja necessitava de 688 combatentes sãos para transportar os enfermos.
[5] NE – Os mais resistentes; obstinados; determinados.
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3- A queima do último carro e os bois carneados
Às duas horas da tarde, à custa de trabalho, tudo estava na margem direita. O nosso último carro foi queimado e os bois mortos para serem comidos. Durante toda a tarde os casos de epidemia multiplicaram-se a ponto de ser impossível conceber como havíamos de avançar. Uma tentativa de preparação de novas padiolas que viram fazer por ordem do comandante, levou ao desespero e descontentamento dos soldados que nisso enxergavam apenas aumento de carga e de fadiga.
Transporte dos Cholericos. Monumento aos Heróis da Laguna e Dourados
Imagem do Livro A Epopéa de Matto-Grosso No Bronze da Historia. 1926. Capitão Cordolino de Azevedo
4- O descontentamento entre os condutores dos coléricos e a profanação das sepulturas pelos paraguaios
Chegou-se a pressentir que entre eles surgia a ideia geral de debandada:
__ “Lançando-nos todos no mato, diziam alguns, havemos de chegar a Nioac e ao menos deixaremos de ser escravos de gente a morrer, pela mor parte enfurecida”.
Entretanto os inimigos tinham vindo ocupar o nosso último acampamento e mandaram contra nós uma linha de atiradores, que apenas mostrou-se para dissipar-se diante de duas companhias nossas. Então, como não estávamos em estado de poder persegui-los, puseram-se mui tranquilamente a revolver todos os cantos do nosso último pouso, deram com montículos recentemente cavados[6] e tornando a abrir as covas, delas tiraram os cadáveres e os despojaram para apoderarem-se de alguns miseráveis andrajos que depois disputavam violentamente uns aos outros, alguns até apressaram-se em vesti-los. O binóculo mostrava-nos distintamente esse revoltante espetáculo, que punha-nos estupefatos como se fora incrível miragem, quando uma das nossas granadas, saída da peça de Napoleão Freire, que fizera pontaria neles enquanto estavam em grande número no meio das sepulturas, foi estourar-lhes exatamente sobre as cabeças, matando alguns, precipitando outros nas covas, dispersando o resto e limpando o lugar da sua presença. Tão justa represália derramou alguma animação no acampamento até ao pôr do sol desse triste dia.
A Cavalaria paraguaia. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
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Notas de Referências:
[6] NE – Sepulturas feitas na terra.
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Parte II
Chegando ao Capão e Córrego[7] Cambaracê, todo o drama neste pouso
5- O comandante Camisão em desabafo e conferência
À noite mandou-nos chamar o coronel Camisão. Tivera várias conferências com os comandantes dos corpos e parecia profundamente impressionado. Falou, no entanto, sem excitação da fatalidade que se prendera aos movimentos da coluna e repetiu várias vezes o que sentia sinceramente na alma, que para um chefe a morte era preferível ao espetáculo que tinha sob os olhos havia algum tempo. Queixou-se em termos moderados, não já no tom acerbo com que o fizera anteriormente, da escolha do caminho que lhe tinham feito tomar:
__ “E Nioac? Exclamava.
__ “E os nossos doentes! Preferia estar no lugar de um dos que morreram”! Conhecíamos bem que ainda tinha alguma cousa que dizer-nos, mas retiramo-nos sem que ele se abrisse conosco.
Vista do Monumento Histórico do Cambaracê. A Inscrição sob uma base e coluna de concreto. 3º Encontro Internacional de História Militar, 2011. Imagem Arquivo José Vicente Dalmolin.
Às dez horas da noite vieram chamar-nos, a segunda vez de sua parte. Deixamos o couro que com o tenente-coronel Juvêncio compartíamos e ambos fomos com ele ter. Estava em conferência com o major Borges e o capitão Lago excogitando[8] meios de transportar os novos doentes, colocando-os em metades de couro presos pelas beiras à guisa[9] de cacolets, e pondo-os nas mulas, que carregavam o nosso cartuchame; cousa impraticável, quando mais não fosse, pelo acréscimo de carga que assim recairia sobre os soldados, já fatigados. Sustentou, no entanto, essa ideia com insistência contra a opinião de todos. Separamo-nos ainda sem conhecer-lhe o fundo do pensamento.
Enfim cerca de meia noite, convocou de novo os comandantes e os médicos. Acabava de tomar uma resolução suprema, que discutira consigo mesmo nos dias precedentes como recurso extremo e cuja ideia viera sem dúvida a todos os espíritos como se apresentara ao seu, sem que pessoa alguma ousasse exprimi-la.
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Notas de Referências:
[7] NE – Corrego camabarecê é uma denominação já dos tempos modernos. No episódio da Retirada da Laguna não possuía denominação. De acordo com a Enciclopedia das Aguas de Mato Grosso do Sul, 2014, Instituto Histórico e Geográfico de MS “Cambaracê. Córrego, intermitente, afluente, pela margem direita, do rio Verde, no município de Jardim. Bacia do rio Paraguai. Etimologia. Cambaracê significa em guarani: onde o negro chorou (entendendo-se por negro todo brasileiro), referindo-se aos pedidos de misericórdia dos coléricos abandonados, que foram degolados pelos paraguaios. História. Na Retirada da Laguna, o comandante, coronel Camisão, decidiu abandonar, às margens do Cambaracê, os doentes (atacados pelo cólera, pouco mais de cem), para salvar o resto da tropa”.
[8] NE – Imaginando; cogitando.
[9] NE - À feição de cangalhas. Cacolet, para o transporte de campo de soldados feridos.
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6- A terrível decisão: abandonar parte dos enfermos coléricos?
Mata do Cambaracê. A árvore da espécie braúna, onde fora esculpida a inscrição Cambaracê, em 1926. À esquerda sentado, José Francisco Lopes, penúltimo filho do Guia Lopes e também prisioneiro em Horqueta no Paraguai, de 1865 a 1870, junto com militares do 6º BEC de Aquidauna, que serviu de guia ao Tenente Moreira para localizar e sinalizar ao local conhecido como Mata do Cambaracê. Imagem recuperada do Livro Os Heroes Esquecidos, Alfredo Malan, 1926.
Depois de expor em poucas palavras o estado das cousas, a urgência de uma marcha precipitada, sem a qual estavam todos perdidos e a impossibilidade, agora bem verificada e geralmente reconhecida, de levarmos mais longe os doentes, declarou aos comandantes que, sob a sua responsabilidade e pela lei de rigor que lhe impunha esse dever, os coléricos, com exceção dos convalescentes, iam ser abandonados nesse mesmo pouso!
Enfermo com cholera morbus Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Nenhuma voz se levantou contra esta resolução, cuja responsabilidade tomava inteira e generosamente a si. Longo silêncio acolheu a ordem e sancionando-a!
Os médicos foram no entanto convidados pelo coronel, a apresentar as observações que porventura lhes inspirassem as obrigações da sua profissão.
O doutor Gesteira, depois de alguma reflexão, disse que não podia aprovar nem desaprovar semelhante passo, que o seu juramento de médico por um lado e por outro a sua consciência de funcionário público junto à expedição pareciam-lhe estar no caso vertente em completa contradição, e que conseguintemente via-se reduzido ao silêncio.
O comandante então, como fora de si, ordenou que fossem imediatamente à luz de archotes[10], abrir uma clareira no bosque[11] vizinho para transportarem-se para aí e ali ficarem os coléricos.
Uma clareira aberta no bosque (mata do cambaracê) Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Ordem terrível de dar!
Terrível de executar!
E que, no entanto, forçoso é dizê-lo, não despertou dissentimento algum, censura alguma!
Os soldados puseram-se imediatamente a fazer os lúgubres[12] aprestos[13], como se obedecessem a uma ordem habitual. E depois, tão facilmente desaparece a moralidade sob a pressão da necessidade!
Colocaram no bosque[14], com a espontaneidade do egoísmo, todos esses condenados inocentes, os desgraçados enfermos. Muitos, companheiros de longo tempo, alguns, amigos provados por perigos comuns.
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Notas de Referências:
[10] NE – Fachos. Tochas.
[11] NE – Atualmente este local é conhecido pela denominação de “mata do Cambaracê”. Denominação esta atribuída pelos próprio paraguaio.
[12] NE – Funestos; fúnebres.
[13] NE – Apetrechos; implementar.
[14] NE – Este local e a mata que ficaram acampadas as topas do dia 25 para 26 de maio de 1867 e onde os enfermos coléricos foram deixados, os paraguaios denominara de Cambaracê, termo grafado para a língua portuguesa do Brasil. Entretanto a sua origem é na língua Guarani. Literalmente pode ser traduzido desta forma: Kamba:(Guarany) negro (espanhol, português). Rasẽ: (Guarany) llorar. (Español). (Português = chorar) ou Hasy: (Guarany) enfermo, doente (Español). (Português é similar a doente ou enfermo). Alguns autores traduzem como “Choro de negro”, “lamento de negro”. (José Vicente Dalmolin, Memorial Histórico do Cambaracê, 150 anos.) A epidemia do cólera dizima mais soldados que os próprios combates contra os paraguaios.
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7- A reação dos enfermos Coléricos
E, cousa que parecerá extraordinária, os próprios coléricos, logo e sem que fosse necessário recorrer a subterfúgios, aceitaram com resignação este último golpe da sorte.
Resignação este último golpe da sorte. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Contribuíam por certo para a indiferença deles as dores da horrível enfermidade, talvez também a ideia do repouso substituído as torturas dos solavancos da marcha, mas principalmente esse fácil desprendimento da vida que é próprio dos brasileiros e que os torna depressa excelentes soldados.
O que todos pediam apenas, era que lhes deixassem água para beber.
8- O Tenente-Coronel Juvêncio cai enfermo pelo Cólera
Sob tantas impressões funestas reuníramo-nos ao redor da barraca do tenente-coronel Juvêncio. Os seus gemidos para lá chamaram a atenção de todos.
__ “A moléstia acabava de ataca-lo também. Já não era possível reconhecê-lo, estava com a voz demudada e sinistra.
Correr à barraca dos médicos foi o nosso primeiro movimento e dela voltávamos quando ouvimos junto de nós uma detonação, seguida de muitos tiros das sentinelas inimigas.
Era o soldado de plantão do quartel-general que se havia suicidado. Medonhas câimbras tinham-se apoderado dele subitamente. Acabava de libertar-se delas!
Soldado de plantão do quartel-general não suportando as medonhas câimbras. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Soldado de plantão do quartel-general não suportando as medonhas câimbras. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Todos estes rumores tinham-se produzido sem que o tenente-coronel mostrasse percebê-los ou desejasse conhecer-lhes a causa. A sua agitação tomara pouco a pouco o caráter de alucinação frenética.
Nós mesmo que ficávamos perto dele, caindo de cansaço, exausto com tantos abalos, não podíamos combater uma como modorra[15] pejada de visões de desalento e morticínio.
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Notas de Referências:
[15] NE -Sonolência; torpor.
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9- A morte do filho do Guia Lopes, José Francisco Lopes Junior
A mudança das vítimas durara toda a noite, até aos primeiros albores do dia. Foi nesse momento angustioso do abandono desses infelizes que o velho Guia Lopes, que na véspera voltara da excursão às suas terras e que já tinha dito que o filho estava doente, veio anunciar-nos a sua morte.
Estava com a voz trêmula, mas a atitude calma.
__ “Meu filho morreu”!
Disse depois ao coronel:
__ “Desejo levar o seu corpo para o primeiro sítio das minhas terras onde possa enterrá-lo. É um pequeno favor que peço para ele e para mim. A sua vida, assim como a minha, pertencia à expedição. Deus, que é Senhor, salvou-o muitas vezes das mãos dos homens para hoje tomá-lo”.
Tudo se entenebrecia a cada momento e por toda a parte em torno de nós. Nada era mais digno de inspirar simpatia e compaixão que o aspecto do coronel depois da ordem que dera e que era cumprida enquanto começávamos a marchar.
Prosseguir a marcha deixando para trás os enfermos cholericos. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Pesar, remorso, fraqueza de ânimo em apreciar as razões pró e contra que o tinham feito obrar e que ele queria ainda pesar, no momento em que já fizera passar a sua decisão ao domínio dos fatos; sob tamanho esforço estava pálido como um espectro, parando apesar de si mesmo para ouvir.
10- Deixando os enfermos coléricos e o pedido de clemência aos paraguaios
Por mais silenciosos e tristes que fossem os preparativos, não foi sem gritos, sem rumores estranhos ao ouvido e cuja causa assombrava a razão, que o momento da realização chegou, foi para todos nós insuportável.
O desespero sem poder seguir a marcha. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Deixávamos ao inimigo mais de cento e trinta infelizes[16] sob a proteção de um simples apelo à sua generosidade nestas palavras traçadas em letra grande sobre um cartaz pregado a um tronco de árvore:
Fixação do Cartaz em uma árvore. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Fixação do Cartaz em uma árvore. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
__ “Grâce pour les cholériques”! (texto original Francês)
__ “Compaixão para os cholericos”! (texto para Português do Brasil)
__ "La compasión por cholericos"! (adaptado para o Espanhol)
Pouco tempo depois de nos partirmos e já fora do alcance da vista, estrepito de nutrida descarga de fuzilaria veio ferir a todos os nossos corações.
Aproximação da Cavalaria Paraguaia. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
E que clamores incríveis não ouvimos então! Tínhamos medo de olhar uns para os outros.
Enfermo Cholerico recebendo o golpe final através de uma lança do cavalariano paraguaio.Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
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Notas de Referências:
[16] NE - Ha uma tal ou qual divergência quanto ao número de coléricos lançados na clareira. A parte oficial do major José Thomaz Gonçalves, comandante da Expedição, após o falecimento do coronel Camisão, consigna 76.
Taunay, em sua Retirada da Laguna registra em 130 - " Deixávamos ao inimigo mais de cento e trinta infelizes sob a proteção de um simples apelo à sua generosidade nestas palavras traçadas em letra grande sobre um cartaz pregado a um tronco de árvore: __ “Compaixão para com os coléricos”!
Em suas Narrativas Militares conta em mais de duas centenas: "Mais ele 200 homens encheram a clareira, mais de 200 homens que, a se estorcerem de câimbras pressentiram o funesto plano ".
O Historiador Sul Mato-grossense Acyr Vaz Guimarães, cita o numero de 135 , de enfermos que foram deixados no pouso do dia 25 para 26 de maio, sendo 76 o de soldados e 59 entre índios, mulheres, camaradas, ajudantes dos oficiais. Seiscentas Léguas a Pé.1988 e História dos Municípios, 1992.
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11- Informações dadas pelo fugitivo e sobrevivente Calixto
Parece, conforme o que nos referiu mais tarde um desses míseros abandonados[17], milagrosamente salvo, que muitos doentes, ele não sabia bem se houvera, ou não, geral morticínio, que muitos desses infortunados levantaram-se convulsivamente, e, reunindo todas as suas forças, puseram-se a correr em nosso encalço, entretanto, nenhum pôde alcançar-nos, ou fosse por fraqueza, ou fosse por perseguição do inimigo. A nossa coluna, entretanto, tinha por si mesma demorado a marcha, instintivamente, como se quisera esperar.
Os enfermos coléricos tentando fugir da fúria da cavalaria paraguaia. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
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Notas de Referências:
[17] NE – Nesta ocasião Cabo Calixto Medeiros de Andrade. Em um tempo oportuno será publicado outros registros.
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Parte III
Em terras da Estancia Jardim
12- Retomando, sepultando o filho do Guia Lopes e os sentimentos do pai.
Já os nossos armões estavam atulhados de novos enfermos convalescentes envolvidos. O corpo de exército, tomado de sombria desesperação, tinha apesar do seu cansaço, desde que esticara o passo, vencido talvez duas léguas. A necessidade de repouso fê-lo parar à margem de uma ribeira que atravessa as dependências da estância do Jardim.
O filho de Lopes, carregado até ali em cima de um reparo de peça e escoltado pelos seus antigos companheiros de cativeiro no Paraguai, foi enterrado na margem direita. O pai que se conservara alguma distância da cova enquanto a abriam, como lhe viessem dizer que o solo estava muito úmido e até encharcado:
__ “Agora, que importa”!
Respondeu:
__ “Restituam à terra o que lhe pertence”! “Rendez à la terre ce qui lui appartient”!
Veio pouco depois colocar-se ao nosso lado, pálido e como extenuado de cansaço, mas, todavia, dominando-se.
Pequeno Monumento construído em 1999, em homenagem ao filho do Guia Lopes, José Francisco Lopes Junior, nas proximidades onde fora sepultado no dia 27 de maio de 1867, identificado pela equipe coordenada pelo Capitão Mattos, do 10º RCM de Bela Vista. Foto CAT/Jardim 2004.
Sob os nossos olhos dilatava-se a sua imensa propriedade, da qual mostrou-nos vários pontos para ele consagrados pelas recordações da vida tranquila que nela vivera.
Ali, ao longe, as suas vacas de leite iam beber a água do solo nitroso. De outro lado, o gado, parte do qual era meio selvagem, encontrava excelente pastagem que o detinha ou fazia voltar dentro em breve. Outros sítios despertavam nele a imagem de alguma cena patriarcal. Estava com uma expansão febril que não podia reprimir.
13- A enfermidade do cólera ataca o comandante Carlos de Moraes Camisão
Quando o deixamos, já inquieto por amor dele, tínhamos pressa em ir ter com o tenente-coronel Juvêncio. Vimos que nada mais se podia esperar do estado em que estava, como de sobejo o suspeitávamos. E indo referi-lo ao comandante Camisão, foi com certo pavor que o vimos também atacado por sua vez. Deitado de costas no chão, com o chapéu sobre o rosto, apenas levantou-se e descobriu-se para falar-nos, reputamo-lo perdido. Os sinais do cólera estavam nele impressos. Conservava, entretanto, uma calma que a conjuntura tornava admirável.
O Comandante Carlos de Moraes Camisão também cai contaminado pelo Cholera Morbus. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
__ “E eu também, disse, vou morrer”!
__ “Não podia ser senão assim”!
__ “Mas salvei a expedição”!
__ “O Senhor bem sabe”!
__ “ O Senhor di-lo-á”.
Quando continuamos a marchar, não tentou sequer montar a cavalo. Carregaram-no para um armão onde foi acomodado ao lado do tenente Sylvio já agonizante, cadáveres ambos junto um do outro. A impassibilidade do coronel era completa, mãos cruzadas em cima do peito, chapéu em cima dos olhos para furtar-se aos raios do sol deslumbrante que alumiava esta cena merencória. Como Juvêncio se queixasse também de tão excessiva claridade, corremos para o meio dos nossos em busca de um chapéu[18] de sol que víamos aberto.
O Coronel Camisão sendo amparado por um oficial. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Não pudemos reter um grito de dor ao reconhecer debaixo desse abrigo o alferes Miro[19], que expirava no meio de sofrimentos horríveis, um dos moços mais dignos de estima do nosso corpo de exército. Vimo-lo de manhã bem disposto e valente, colocado agora em cima do seu cavalo, com dificuldade sustinha-se entre os braços de um patrício, seu amigo, o capitão Deslandes, que tinha em breve de confiá-lo à terra.
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Notas de Referências:
[18] NE - guarda-sol.
[19] NE – No original em Francês e na tradução o trata por “Miro” Entretanto, em algumas versões modernas traduz por “Mirá”.
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14- O pouso no Retiro de Lopes
O ponto do pouso estava marcado, era no meio do retiro[20] de Lopes. Assim a missão do velho guia aproximava-se do seu termo definitivo, e este dever dir-se-ia que era o derradeiro laço que o prendia à vida.
Dissera-nos algumas horas antes:
__ “Olhe para este campo de um verde-escuro, é o meu retiro, não chegarei lá!
Quanto aos senhores, dentro em breve estarão em Nioac”.
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Notas de Referências:
[20] NE – terras da margem esquerda do rio Miranda.
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15- A vez do Guia, a próxima vítima da epidemia do Cólera
Enfraquecido, curvado ao meio, caminhava com a cabeça inclinada para o arção da sela. De repente escaparam-lhe os estribos e rolou no chão! Estava com o cólera!
Colocado em cima de um armão de peça, reanimou-se um tanto e dalí dirigia ainda a marcha. Como o genro[21], Gabriel, quisesse atalhar por um capão, recomendou com voz sumida:
__ “Rodeiem-no, disse com voz extinta, dentro o mato é muito fechado”.
Ao cair da noite estávamos à vista da colina, ao pé da qual se acha o retiro, antigo lugar onde reunia-se o gado da estância, que Lopes mostrara-nos de longe pouco antes.
O sol declinava! Grandes raios alaranjados saiam-lhe do disco no fundo do horizonte e realçavam o mais admirável panorama, tão esplêndido que ainda hoje no-lo representa a memória.
Final
de tarte nos campos do Camabaracê – Jardim – MS. Brasil. Imagem José Vicente
Dalmolin, 2011.
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Notas de Referências:
[21] NE – Como já notifiquei no Capítulo V, esclareço que: Ignacio Gonçalves Barbosa, era o Genro do Guia Lopes (fora casado com a filha do Guia Theotonia Maria Lopes). Gabriel Francisco Lopes era seu Sobrinho (filho de Senhorinha e Gabriel, irmão do Guia) . Neste contexto não fica muito claro se o autor refere-se ao genro ou ao sobrinho, assim deixo conforme ao original em Francês.
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16- Ainda breve encontro com a cavalaria paraguaia
Essas belezas eternas da natureza tornavam ainda mais pungente para nós o sentimento de nossa ruina próxima.
Absorvia-nos esta contemplação quando um esquadrão paraguaio apresentou-se a galope com evidente intenção de cortar-nos em algum ponto a nossa linha desigual e interrompida, porém, tendo toda a força feito alto como por si mesma, vemo-nos preservados desse ataque.
A Tentativa da Cavalaria paraguaia de fazer um confronto com as Forças Brasileiras. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Entardecer
na mata do Cambaracê. Imagem captada do
Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Absorvia-nos esta contemplação quando um esquadrão paraguaio apresentou-se a galope com evidente intenção de cortar-nos em algum ponto a nossa linha desigual e interrompida, porém, tendo toda a força feito alto como por si mesma, vemo-nos preservados desse ataque.
17- Atingindo à margem do atual córrego Cachoeirinha
Acampamos nesse mesmo lugar, tendo feito quatro léguas de marcha forçada, privados como estávamos de alimentação e de sono. A necessidade coagia-nos, penetramos no fechado do retiro.
O coronel Camisão, o tenente-coronel Juvêncio e o nosso guia Lopes foram acomodados em um rancho arruinado perto do qual acenderam-se grandes fogueiras para ver se lhes restituíamos o calor.
Alguns limões e laranjas que lhes trouxeram, acalmaram-lhes um tanto a sede.
O doutor Gesteira quis ainda experimentar um medicamento no coronel.
__ “Doutor, disse ele, vá ter com os soldados”!
__ “Não se canse inutilmente comigo. Estou morto”!
A calma não o abandonou um momento. Mal deixava escapar alguns surdos gemidos no meio de sofrimentos cujo excesso fazia gritar e estrebuchar os seus companheiros de dor.
Este marco, que se encontra a nossa frente, deveria ser implantado a 930 metros desta posição, na margem esquerda do Córrego da Cachoeirinha, no local, onde existiu um antigo passo, que foi muito utilizado até a construção da 1ª ponte de concreto da BR velha, que ligava Jardim a Porto Murtinho. Inscrição do Marco:
KM 116 - distância Percorrida
Retirada da Laguna – nome do Episódio da Guerra com o Paraguai
27 de maio de 1867 – Data do Evento
Passo do Cachoerinha – Nome do local
Material cedido pela Relações Pública - Comunicação Social - 4ª Cia. Eng. Cmb. Mec. - Jardim - MS. 2014.
A noite correu para todos em agitação extrema!
Aos lamentos respondiam outros lamentos!
Aos horrores da moléstia acresciam os desfalecimentos da fome.
Na manhã do dia 27 de maio, os inimigos aproximaram-se ainda de nós, parecendo querer atacar-nos na passagem do regato[22] a que o retiro dá o nome, mas contiveram-se diante da atitude do Nº. 17º Batalhão de Voluntários que formava a nossa retaguarda e a marcha recomeçou como na véspera.
O coronel Camisão, já sem voz, era levado em cima de um armão de peça. Lopes em cima de outro. O tenente-coronel Juvêncio em uma rede, bem como muitos outros oficiais e inferiores.
Tinham morrido três deles no pouso.
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Notas de Referências:
[22] Este córrego recebe atualmente o nome de Cachoeirinha e está localizado no município de Jardim-MS.
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18- à margem esquerda do Rio Miranda
a- Dia 27 de maio de 1867, falece José Francisco Lopes, o Guia Lopes, aos 56 anos de idade
À meia légua do retiro alcançamos enfim a mata do rio Miranda, mas demasiado abatidos e acabrunhados para podermos experimentar a alegria com que contávamos.
Na margem oposta via-se a casa do Guia[23], o teto hospitaleiro em que o viandante encontrava agasalho e abundância de tudo. Então, ao chegar ali, o nobre velho expirou, insensível à vista de quanto havia amado.
José Francisco Lopes, O Guia Lopes.
Foi enterrado no meio do nosso acampamento, em terra que lhe pertencia. Os amigos puseram-lhe sobre a sepultura uma cruz de pau.
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Notas de Referências:
[23] JOSÉ FRANCISCO LOPES – Cognome Guia Lopes Nasceu em 26 de Fevereiro de 1811, Piumhi – MG. Faleceu 29 de Maio 1867 (Atual Cemitério dos Heróis- Jardim-MS.) Os restos mortais foram transferidos para o Monumento aos Herois de Laguna e Dourados, no Rio de Janeiro. Oportunamente será publicado um resumo sobre o Guia Lopes. Outros dados podem ser acessados em http://nossaterranossagentenossahistoria.blogspot.com.br.
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O Guia Lopes
“Para representá-lo procurei dar-lhe a atitude calma
do homem do sertão e a serenidade
contemplativa de quem sempre viveu no seio da
Natureza. Assim foi compreendido o caráter daquele sertanejo, alma bem formada,
corajosa, simples, memorável. Com essa serenidade e simplicidade de modo,
salvou nossa Expedição de desaparecer sob o fogo inimigo. A sua figura
contrasta com a expressão de amargura e desalento que se achava a tropa, responsável
pelo bom êxito da missão de que fora incumbida ”. ( Epopeia de Mato Grosso, no Bronze da História. Capitão
Cordolino de Azevedo. 1926)
Praça General Tibúrcio – Rio de Janeiro
Monumento aos Heróis da Laguna e Dourados
- O Guia Lopes (José Francisco Lopes)
Arquivo José Vicente Dalmolin e Edmilson
Lima de Souza/2007 Monumento Histórico do Cemitério dos Heróis da Retirada da
Laguna.
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