CAPITULO XVI
AS FORÇAS EM OPERAÇÕES NO SUL DA PROVÍNCIA DE MATO GROSSO
A marcha da Retirada prossegue e novo inimigo gera pânico: o cholera morbus. Desafios da resistência à sobrevivência, dias 20 a 24 de maio de 1867
Vencendo os atoleiros com as peças de artilharia. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Parte I-
1- Vislumbre de esperança, O Guia Lopes em nova perspectiva e desafios com o cholera morbus
Lopes, a quem viramos algum tempo perturbado a ponto de duvidar de si próprio, acabava enfim de reconhecer onde estava e de orientar-se. O mistério daquelas paragens dissipara-se de súbito para ele à vista de um cume distante.
O Guia Lopes, José Francisco Lopes, reencontrando o caminho. – Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Mostrou-nos e garantiu-nos de que dali a dois dias estaríamos na sua estância:
__ “De lá se avista, afirmou, aquele pico que os senhores veem”.
Tal nova reanimou aos mais fracos, aos mais desanimados.
Chegando à Estância do Jardim a 21, poderíamos pelo dia 25 entrar em Nioac antes dos paraguaios e preservar esta povoação de novo saque com uma marcha realizada em onze dias em vez de quinze.
2- O alarme sobre o aparecimento da epidemia do Cólera-morbo e o novo inimigo ataca
Tínhamos destarte muito próximo de nós o termo das nossas desventuras, quando outra nova, mais terrível que as passadas desditas, veio agravar as nossas circunstâncias muito além das mais lúgubres previsões. De improviso correu por todo o acampamento o boato de que tínhamos nele o cholera morbus.
Os doutores Quintana e Gesteira tinham revelado o seu aparecimento ao comandante, havia alguns dias e depois um índio terena, recebido na enfermaria de Bella Vista, morrera dele no espaço de um dia.
Supusera-se que talvez não passasse de caso esporádico e fosse como fosse, fora o fato conservado em segredo, pois nada se podia fazer, por faltar tudo para as precauções que deviam ser tomadas. Algumas fogueiras, as maiores que era possível formar, tinham-se acendido em todos os pousos. Os soldados supuseram que não passavam de simples meio de purificar o ar dos pântanos. Em verdade o silêncio era então o melhor preservativo contra a propagação da moléstia.
Mas no dia 18 o mistério não podia perdurar por mais tempo. Três soldados foram atacados pela epidemia com todos os sintomas mais graves e para logo os nossos dois médicos, que tinham assistido a primeira invasão do cólera no Rio de Janeiro, julgaram que lhes corria o dever de não ocultar mais a verdade.
Fora, no entanto, necessário pôr-nos a caminho, mas alguns soldados, ao marcharem, viram-se subitamente presa de mal-estar e de sincopes[1]. Foi o que bastou para lançar o susto e a confusão nas fileiras. Já se não avançava.
Os três homens, atacados precedentemente, sucumbiram.
Exaustos, dominado pelo cholera morbus, vibrio cholerae , os soldados vão padecendo. - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Exaustos, dominado pelo cholera morbus, vibrio cholerae , os soldados vão padecendo. - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Dentro em pouco a carreta que nos restava e um carro de munições que se lhe adicionou, ficaram cheios de doentes, cujos gemidos apressavam por toda a parte a manifestação da epidemia.
Esse dia funesto teve uma tarde e uma noite como era dado esperar.
No dia 20 maio de manhã, o tempo, chuvoso a princípio, clareou e o sol tornou-se dentro em breve abrasador. Os animais andavam por isso ainda menos, os homens não faziam mais do que arrastar-se, com a morte debaixo dos olhos e no coração.
Os paraguaios tinham restabelecido a ponte e passado.
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Notas de Referências:
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Notas de Referências:
[1] NE - Denominada popularmente por desmaio, é a perda momentânea de consciência e de força muscular.
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3- A marcha lenta, a epidemia do cólera e novo incêndio nas macegas
Já estavam em nossa frente, os paraguaios e logo que o calor do dia dissipou o orvalho e secou o mato, puseram-lhe fogo com êxito tamanho que a coluna, a não ser um bosque de pindaíbas felizmente provido de água, seria vítima do incêndio. Lopes apenas teve tempo de pôr-nos nesse abrigo. O coronel deu ordem para que ali acampássemos. Atacados nessa própria posição, defendemo-la como se defende o derradeiro refúgio. O tiro das nossas peças obrigou afinal o inimigo a retirar-se.
O soldado brasileiro no meio da fumaça - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Mas em redor de nós tudo era fumo, trevas e vapores ardentes. Mais um dos nossos soldados caiu morto asfixiado.
Outro soldado que, cego no meio de um turbilhão, confundira-se com os paraguaios, saiu dentre eles e tornou para nós, sem ter sido reconhecido, graças à escuridão.
4- A epidemia do cólera faz novas vítimas entre outros o chefe dos Terenas
A epidemia do cólera fez nesse dia nove vítimas. Assinalaram-se vinte casos novos e entre eles o chefe dos terenas, Francisco das Chagas, a quem os seus tinham trazido moribundo em uma rede. Os desgraçados índios estavam no auge do terror, mas já não podiam separar-se da coluna, porque a planície estava toda ocupada por um inimigo paraguaios que, quando os apanhava, não deixava de dar-lhes a morte no meio dos mais horríveis suplícios.
5- O Autor (Alfredo Taunay) interrogando-se sob as causas da epidemia do Cólera e o desesperos dos enfermos
__ A que causa poderíamos atribuir essa invasão do cólera ou para melhor dizer, a que causa não a poderíamos atribuir?
__ Seria a carne estragada com que éramos obrigados a sustentar-nos?
__ Seria a fome tanta vez suportada quando o nojo vencia a necessidade?
__ Seria o ardor intolerável dos incêndios que nos queimava o sangue?
__ Ou o envenenamento por meio de todas as substâncias vegetais que devorávamos, grelos[2], frutos verdes e putrefatos?
__ Seria principalmente a insalubridade do ar, viciado pela água estagnada em cima de detritos de plantas, em todas as lagoas, em todos os lameiros e em todos os brejos, que são inúmeros naquela região?
Alguns acreditavam que a enfermidade podia ter vindo dos próprios inimigos. Os paraguaios devem por certo ter sofrido dela, posto que nunca houvessem passado pelas mesmas privações que nós. Reforços mandados do seu exército do Sul, que era dizimado pelo flagelo, poderiam tê-lo trazido consigo. Uma razão que nos levaria a acreditar que ele estava com os inimigos, era a frouxidão dos seus ataques já para o fim, posto que eram sempre frequentes; entretanto, o número do El Semanario[3] de Assunção que vai anexo a nossa narrativa, não faz, como se há de ver, menção alguma da epidemia nos seus acampamentos.
À noite caiu chuva abundante que veio agravar todos os nossos sofrimentos. Os coléricos acumulados junto da pequena barraca dos médicos, ao ar livre e sem abrigo, receberam nos corpos álgidos[4] os aguaceiros que se sucediam com intervalos. Esse grupo de infelizes dava dó em vê-los, em agitação sem termo, rasgando os andrajos com que tentávamos cobri-los, rolando uns sobre os outros, a torcerem-se com câimbras. De instante a instante erguiam-se dentre eles vociferações, bramidos, que se confundiam em um só grito articulado:
__ “Água”! “Água”!
Os médicos tinham esgotado os recursos, a princípio zelosos e ativos, tinham desanimado diante do número sempre crescente dos doentes e apesar da ordem que proibira como fatal o uso da água, davam-na para satisfazer um instante ao menos aos moribundos; a isso limitavam-se todos os seus cuidados.
Nem por isso deixamos de pôr-nos em marcha na manhã do dia 21 de maio. A galera e o carro[5] que levavam mais do dobro da carga ordinária, deixavam pender para todos os lados braços, pernas, cabeças que já pertenciam à morte. Os carros manchegos, os armões da artilharia estavam também atulhados de infelizes recentemente atacados e já expirantes.
Carros manchegos, os armões da artilharia estavam também atulhados de infelizes enfermos. - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
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Notas de Referências:
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Notas de Referências:
[2] NE – O mesmo que brotos de vegetais.
[3] NE – LER Anexo cópia em espanhol do Periodico El Semanario
[4] NE – Corpos gélidos; gelados.
[5] NE - A carreta e o carroção.
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6- Ainda o sofrimento dos bois e novamente a tática do incêndio na macega para deter a marcha
Mas, apenas a macega perdeu a umidade, o odioso meio de guerra dos paraguaios foi ainda posto em prática contra nós e cerca de um quarto de légua do nosso último pouso, o incêndio impelido por fresca aragem pareceu por um momento não poder deixar de envolver-nos no próprio sítio em que havíamos parado, e onde todo o zelo de Lopes seria improfícuo. Somente uma mudança na direção do vento desviou esse furacão aceso.
Lutando contra os incêndios para salvar as Forças Brasileiras - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Continuamos o nosso lúgubre desfilar, mas não tínhamos andado meia légua quando os bois da artilharia afrouxaram, por não terem bebido água desde o acampamento do dia 19 de maio.
Estávamos felizmente em terreno cujo capim escapara ao fogo dessa manhã, provavelmente em razão da mesma mudança da corrente de ar que nos salvara. Era uma extensa esplanada que se levantava de improviso de uma depressão de terreno onde corre um minguado regato.
7- O Guia Lopes, o Morro da Margarida e outro incêndio
Outro plano um tanto mais elevado e voltado para o sul ligava-se a um campo dilatado, o mesmo que Lopes em uma incursão anterior denominara “Campo das Cruzes” e no fundo do qual estava o nosso ponto de orientação, o morro da Margarida. O perfil desse pico é um tanto notável pela sua graciosa regularidade e já o tínhamos avistado uma vez de Bella Vista, e saudamo-lo então como a um amigo.
Morro Margarida[6] – Bela Vista – Mato Grosso do Sul – Brasil. Imagem
Se tal foi a nossa impressão, a de Lopes devia ser e foi ainda mais viva, via-se justificado aos seus próprios olhos, após incertezas cruéis. A alegria restituiu-lhe toda a vivacidade da sua primeira juventude. Novo incêndio nesse momento erguia-se na planície e vimo-lo correr para lá, com um facho na mão, para combatê-lo, dizia ele:
__ “Com as mesmas armas, tirando-lhe o seu alimento e conseguiu-o passando por entre cavaleiros paraguaios espalhados por todo o campo e que quase o apanharam”.
As labaredas do fogo, fumaça, formam extensos “rolos de fumo” - Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Estava outra vez totalmente senhor de si, livre de toda a responsabilidade que pesara sobre si e quando lhe observamos quanto era preciso que ele se poupasse, respondia que ninguém podia ir de encontro à vontade de Deus, que tudo devia-se pôr nas mãos de Deus, tanto mais quanto dizia-lhe o coração que tocávamos ao termo das nossas provações:
__ “Quanto ao mais, acrescentava, saibamos morrer! Os que sobreviverem contarão o que fizemos”.
A marcha do dia 22 não pôde exceder de três quartos de légua, porque dependíamos completamente dos bois que puxavam os nossos canhões e ainda na véspera o gado não tivera quase o que beber, por isso que o tênue fio d'agua da fonte, perto da qual acampamos, mal chegara para consumo dos homens.
A pouca boiada não foi poupada dos sofrimentos. Quando não tinha mais forças para puxar as carretas ou peças de artilharia, eram sacrificados para alimentação. – Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
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Notas de Referências:
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Notas de Referências:
[6] Morro Margarida: é um monumentoecológico, de elevação impar, existente na região do vale do Rio Apa. É ponto de referência da história do Mato Grosso do Sul e, particularmente, da Guerra da Tríplice Aliança. Taunay em seus relatos sobre a Retirada da Laguna, cita-o por diversas vezes, como principal baliza referenciada por José Francisco Lopes – o guia da Expedição de Mato Grosso em 1867. Está situado a cerca de 38 km da sede do quartel de Bela Vista – o Décimo Regimento de Cavalaria Mecanizado (10º RC Mec), a cuja jurisdição pertence. (Capitão Kruger Mattos, 2008. http://retiradalaguna.blogspot.com.br.
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Parte II
8- Acampando as margens do Córrego Verde, confundido como nascente do rio “Prata”
Fizemos alto involuntariamente junto de um terreno alagadiço cujo pasto era excelente para restituir algumas forças aos nossos animais, e ali ficamos apoiados a um bosque que felizmente estendia-se até um ribeirão[7] denominado Verde, primeiro afluente sul do rio Miranda, cousa que soubemos por Lopes. Aproximávamos-nos desse caudal, alvo de tantos almejos!
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Notas de Referências:
a) Coronel Camisão Enviando mensagem ao Comandante de Nioac
Notas de Referências:
[7] Nos Originais e mesmo em traduções mdernas tratam por nascente do Prata. Entretante, adotei aqui o nome oficial, Verde. De acordo com os levantamentos da Comissão de Limites de Fronteira entre Brasil e Paraguai, Carta Topografica de 1874, chefiada pelo Coronel Rufino Enéas Gustavo Galvão o ribeirão atravessado não foi “Prata” atual “Rio Prata” é o Corrego “Verde”, afluente do primeiro, ambos do Rio Miranda. Embora tenha sido Taunay a descrever este ribeirão como “Prata”, no entanto, quem lhe deu esta informação foi o Guia Lopes, já que nesta região não havia estradas, nem picadas. Ainda que atualmente se verifica que houve esta troca, mas é necessário que o pesquisador, o leitor faça uma contextualização histórica topográfica e hidrográfica entre os idos de 1867 e 2017. Na ocasião somente o Guia e o filho conheciam estas terras. O reconhecimento mais sutil do relevo desta área somente começou a ser balizada a partir do ano de 1873 com a demarcação da fronteira e com o repovoamento. Como o córrego Verde é afluente do Prata, O Guia definiu que este braço de leito era parte da nascente do Prata, já que ele havia batizado diversos acidentes geográficos, entre outros Pedra de Cal, bem descreve Taunay em A Retirada da Laguna.
Esta denominação também é oficializada Pelo IHGMS, através da Enciclopédia das Águas do Mato Grosso do Sul, edição 2014. “Verde. Rio, afluente, pela margem direita, do rio da Prata, no município de Jardim. Bacia do rio Paraguai. Seu curso médio passa distante aproximadamente 5 km da porção leste da lagoa Grande. História - Este rio Verde tinha, até final do século 19, o nome de rio da Prata. Na Retirada da Laguna a tropa alcançou o rio da Prata, ou seja, o rio Verde.”
______________a) Coronel Camisão Enviando mensagem ao Comandante de Nioac
Uma vez chegados a esse ponto, o coronel não enxergou mais obstáculo em participar para Nioac a nossa aproximação e com a nossa, a do inimigo. A comunicação estava livre pelo bosque do Verde que se perde no de Miranda de modo a tornar segura a passagem. Escolheu para essa comissão dois homens dispostos, afeitos a vida do mato, caçadores e práticos naquelas paragens.
O escrito de que foram portadores era dirigido ao coronel honorário que comandava o depósito e redigido em francês para escapar pelo menos as primeiras probabilidades de ser divulgado. Dizia em substância que a coluna pusera-se em retirada, que chegaria provavelmente a Nioac antes do inimigo, mas que convinha em todo o caso mandar transportar, para outra parte, e depositar o mais depressa que fosse possível em lugar seguro as munições, os víveres, os arquivos e alguns objetos pertencentes aos oficiais. Que cumpria principalmente que toda a força de que pudessem dispor, fosse, sob o mando do capitão Martinho, emboscar-se na mata do Nioac e ali detivesse o inimigo, caso se mostrasse.
Estes mensageiros chegaram no dia 24 de maio à colônia de Miranda e ali encontraram os mercadores que haviam regressado com a sua costumada lentidão, tendo achado ainda cheias pelas chuvas os grandes rios[8] que o itinerário pelo caminho da estância do Jardim fizera com que evitássemos. Os nossos correios, deixando esse comboio atrás de si, chegaram a Nioac no dia 27 de maio com os ofícios do comandante e a nova do que tinham visto com os próprios olhos em nosso acampamento, não esquecendo todos os boatos sinistros de que os mercadores não quiseram deixar de tornar-se ecos em caminho.
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Notas de Referências:
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Notas de Referências:
[8] NE – Rios Miranda, Santo Antônio, Feio, Desbarrancado.
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9- Prosseguindo a marcha, o pesadelo com os enfermos colérico a cada instante torna-se insuportável – 23 de maio
Voltemos, porém, ao corpo de exército!
Avançámos no dia 23 de maio[9] perto de uma légua e meia, esforço considerável, pois os nossos soldados válidos estavam então quase todos empregados no serviço das padiolas de doentes e dentre os próprios carregadores, muitos, salteados subitamente pela moléstia em caminho, concorriam para o aumento de carga, em vez de auxílio.
O contínuo a estrebuchar[10] dos agonizantes tornava horrivelmente penosa a tarefa, sob o peso da qual a nossa gente fatigada punha-se também de repente, como a porfia[11] com os coléricos, a soltar gritos selvagens de impaciência, ameaçando atirar com tudo fora e tudo abandonar.
Apenas pequeno número de padiolas ocupadas por oficiais tinha aspecto de triste decência. Recordamo-nos ter em uma delas visto o belo semblante resignado do alferes Guerra, moço exemplar, filho único de uma viúva que não devia tornar mais a vê-lo.
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Notas de Referências:
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Notas de Referências:
[9] NE – Tomei a ousadia de inverter a data cronológica, nos originais e em outras versões recentes registram a data de 25 de maio e não 23 de maio. Após analisar o contexto das narrativas na estrutura cronológica e comparando-as entre os capítulos 16 e 17, pareceu-nos mais coerente adotar esta data, além de que não acarreta prejuízos ao conteúdos, pelo contrário favorece o leitor da Obra.
[10] NE – Convulsões.
[11] NE – Empenho; perseverança.
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10- Novos incêndios. O cólera dizima, crianças, mães, pais, família
Nesse dia 23 de maio ainda o incêndio repetiu-se e precedido de um ataque de atiradores paraguaios. Foram repelidos por alguns dos nossos e o fogo cessou também. Mas o outro inimigo, o cólera, o inimigo oculto, dobrou os golpes com que nos feria, a ninguém perdoava. Uma família inteira, pai, mãe e filho pequenino, morreram juntos no mesmo dia como se fossem fulminados. Outra criança de peito pereceu de inanição, tendo passado da mãe moribunda para o marido e deste para os camaradas do mesmo Batalhão, eles também sem alimento algum.
Uma criança sendo passada para um soldado para receber socorro. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Soube-se que mais de dois dos nossos soldados tinham enlouquecidos e assim explicavam-se os gritos pungentes que misturavam as suas notas agudas a todos os rumores que habitualmente nos afligiam, queixas, furores, desesperação.
11- As deserções aliadas ao desespero entre soldados e índios guaicurus
Outro mal começou, a deserção. Desapareceram vinte e quatro soldados da linha de defesa do acampamento.
Nada mais tinham, no entanto, a esperar que a morte, pela fome ou das mãos do inimigo. Fosse como fosse, desse dia em diante, não houve um só cerrado ou mato onde se não escondesse algum fugitivo. Os nossos índios guaicurus deixaram-nos. O temor da sorte que os aguardava, se os paraguaios os apanhassem, já não podia detê-los.
Tais eram os incidentes que se davam no meio de nós.
Entretanto, o espírito em geral da corporação de oficiais conservou-se calmo, posto que também eles estivessem já dizimados. Procuravam-se uns aos outros, reuniam-se, trocavam palavras de benevolência e de bom conselho.
Os combatentes mais resignados trocavam palavras de benevolência e bons conselhos. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Semelhante tranquilidade era muito natural em homens de temperamento especial, como José Thomaz Gonçalves, Pisaflôres e Marques da Cruz, ou em caracteres excepcionalmente enérgicos como Lago, Catão e José Rufino. Mas a mesma atitude impassível notava-se em outros ainda menos robustamente organizados: no tenente-coronel Juvêncio tomava certo aspecto de melancolia ao recordar-se da família; o comandante Camisão fechara-se em sua dignidade e sentimento do dever; aproximava-se a hora em que disso deviam dar-nos prova incontestável.
12- Os palmitos saciando parte da fome 24 de maio
Na manhã do dia 24 de maio uma chuva torrencial e contínua começou a cair e não tardou que transformasse em um lamaçal o solo argiloso em que tínhamos acampado. O vento frio e penetrante atirava sobre nós avalanches de água.
Nem por isso Pisaflôres, o bravo rio-grandense, deixou de sair à frente de cem homens, para ir a um quarto de légua na margem do Prata abrir uma picada, em um sítio indicado por Lopes. Esta obra que foi rapidamente executada, deu além disso oportunidade aos trabalhadores para descobrirem no bosque palmitos em profusão, recurso inesperado que resolveu o comandante, estando também aí o solo mais seco, a ir assentar novo acampamento.
Entretanto não pudemos começar a transportar-nos para esse ponto antes das cinco horas da tarde e o que foi essa mudança só pode ser exprimida pela palavra desolação. Os paraguaios, observando-nos de muito perto, assaltavam-nos com vaias e tiros de espingarda a que respondíamos como podíamos.
13- O desespero: enfermos coléricos afogados
O mais cruel, porém, foi ao atravessarmos um largo charco, o banho glacial em que ficamos mergulhados até a cintura. Não se conservavam as fileiras, nem sequer enxergávamos-nos uns aos outros. A uma escuridão compacta que sobreviera, sucedeu a noite sem intervalo, uma dessas noites propícias aos desastres e aos crimes, onde mais de um doente aí foi afogado pelos que os carregavam.
Soldados doente, contaminado pelo Cholera, deixado entre as águas. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Às oito horas o grosso da coluna havia passado e acampava. Às dez, a retaguarda foi ocupar o seu lugar.
Pela noite adentro foram chegando os que tinham ficado atrás, os condutores de carretas que haviam-se atolado e até os coléricos que haviam podido pôr-se de pé, depois de atirados das padiolas[12] ao chão.
Um tipo de padiola simples, semelhante as utilizadas no transporte dos enfermos. Imagem
José Vicente Dalmolin, 2015. 11ª Marcha Cívica Cultural da Retirada da Laguna.
Passara-se ai no entanto uma cena em que à memória consola evocar, entre essas padiolas onde estavam deitados os soldados, uma houvera que a queda de um dos carregadores ia arrastar ao charco, prestando-se talvez a este acaso que os livrava da carga os outros três já vencidos pelo cansaço, quando quarto apoio, o ombro de um oficial, apresentou-se para salvar o infeliz que ia morrer, o alferes Clímaco dos Santos Souza que praticou este ato de caridosa dedicação, teve em prêmio, unanime aprovação de todos nós
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Notas de Referências:
[12] NE – padiola, similar a uma maca utilizada para transportar doentes, feridos.
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Notas de Referências:
[12] NE – padiola, similar a uma maca utilizada para transportar doentes, feridos.
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14- O fogo amigo
Estávamos acampados em terreno menos lodacento. Mas ali estivemos largo tempo sem que o fogo pudesse atear-se à lenha encharcada de água que traziam, felizmente a madeira era resinosa. Com que júbilo foram saudadas as primeiras chamas! Um lugar junto desses fogos tomava-se objeto de cobiça. Todos, no entanto iam sendo por fim admitidos, sãos e doentes de envolta. Dois coléricos chegaram a morrer neste local. Arredaram-se os cadáveres! Eram heranças a receber, lugares de calor.
O calor amigo. Imagem captada do Filme Alma do Brasil, 1932 – Retirada da Laguna. Direção: Líbero Luxardo.
Trouxeram logo palmitos, pois os mais ágeis, quando sentiram-se um tanto mais aquecidos, correram a pedi-los aos trabalhadores do capitão Pisaflôres. O alimento estava pronto dentro em pouco em cima de brasas no meio da cinza, e cada qual teve mais ou menos o seu quinhão. Os hábitos hospitaleiros da mesa brasileira não foram nunca desmentidos, nem ali, nem em outros lugares, nas mais terríveis conjunturas.
Panorama entre o caminho de ida para o Apa, Bella Vista, Laguna no lado direito da Imagem partindo da Colônia Militar de Miranda e no lado esquerdo o caminho em Retirada da Laguna, por campos nativos, sem estradas para alcançar a Estancia Jardim, ambas na margem esquerda do Rio Miranda. Adaptada de Google Earth Pro 2017, José Vicente Dalmolin
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PARTE III
Transcrição de Documentos
Documento nº 31
Relatório da parte do Major José Thomaz Gonçalves, comandante interino do Batalhão nº 21 de Infantaria, a marcha dos dias 14 a 26 de maio de 1867
Ilmo. e Exmo. Sr.
Como me foi ordenado, passo a dar parte a V. Exc.ª. das ocorrências havidas nos tiroteios que durante muitos dias suportaram todas as Forças e com especialidade o de dia quatorze em que este Batalhão mais ativamente trabalhou.
Nesse dia, depois de uma penosa marcha, haviam estas forças chegado a uma baixada que a presença da água e cansaço dos bois da Artilharia obrigaram a ser o nosso pouso.
Entretanto, a posição de um morro a cavaleiro onde avistamos o inimigo formado, e portanto, dominava o nosso acampamento, era a pior possível. Os Corpos se dispuseram na ordem em que vinham caminhando, formando quadrados apoiados sobre a bagagem, e assim preparados para qualquer ataque. O meu Batalhão achava-se na frente, ficando fronteiro ao lugar alagadiço, pelo que mandei polo em linha, por não recear carga nem agressão de cavalaria.
Poucos minutos depois da chegada, lançaram os Paraguayos fogo ao capim da colina em que se achavam, fogo que, tangido por um violento vento de Norte, em breve cobriu-nos de espessa fumaça, obrigando-nos a formar um aceiro para impedir a entrada das chamas na área que ocupávamos.
Imediatamente rompeu violenta fuzilaria a que os nossos soldados responderam, apesar de sufocados e quase asfixiados.
Com as abertas que as rajadas de vento de quando em quando abriam na fumaça, reconheceu o Batalhão haverem-se aproximado do banhado cento e tantos infantes, os quais, deitados no chão, faziam continuado fogo.
Aproveitando essas ocasiões, procuramos ofender ao inimigo, o que conseguimos, pois que, antes da terminação da fumaça cessaram os tiros de fuzilaria. O Batalhão nº 21º nas condições desvantajosas em que se achou, portou-se como sempre, debaixo do chuveiro de balas que caia em todos os sentidos.
No dia 16 as demonstrações de quatro fortes esquadrões de cavalaria que manobravam para irem ocupar uma chapadinha, apoiados por infantaria emboscada em matas, na frente e na retaguarda de nossa força que então passava uma cabeceira de córrego muito atoladiça, deram lugar a um forte tiroteio entre as nossas linhas e aqueles infantes que afinal, depois de duas horas, se retiraram, sendo os esquadrões obrigados a pronta retirada pelo fogo vigoroso de nossas quatro peças de Artilharia. Apesar da fuzilaria por esse longo tempo, apenas tive um soldado ferido, pois, o inimigo fazia péssimas pontarias, ocultando-se com cuidado a nossos tiros.
Nos outros tiroteios de dezoito, dezenove, vinte e três, vinte e cinco e vinte e seis do mesmo mês de Maio, o meu Batalhão correspondeu à minha confiança, distinguindo-se neles os oficiais já mencionados em outras partes minhas e os Primeiros Sargentos João Felicíssimo dos Santos, Cabo de Esquadra Francisco de Assis Paixão e Soldado Francisco Romão Abbade.
É de meu dever comunicar a V. Exc.ª. que muitas vezes em marcha vi o Engenheiro Segundo Tenente Alfredo D'Escragnolle Taunay, com o inimigo na frente, passar denodadamente além da linha de atiradores, estudando posições e explorando terrenos.
Deus Guarde a V. Exc.ª.
Acampamento junto à margem esquerda do Rio Miranda, 28 de Maio ele 1867.
Ilmo. e Exmo. Sr. Coronel Carlos de Moraes Camisão, Comandante das Forças.
José Thomaz Gonçalves,
Major Comandante interino.
2º Ten. Bel. Alfredo D'Escragnolle Taunay[13].
Secretário Militar.
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Notas de Referências:
[13] Há omissão da parte do combate do 20º de Infantaria que formava à direita do centro da coluna. Nota do Secretário.
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Notas de Referências:
[13] Há omissão da parte do combate do 20º de Infantaria que formava à direita do centro da coluna. Nota do Secretário.
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